Tempos sentidos

Este texto é uma homenagem ao trabalho dos coordenadores e participantes do projeto "Remar para o futuro" após o trágico acidente ocorrido em 2024, no qual faleceram jovens atletas e o seu coordenador. Em recente atividade na SPPEL, no mês de março de 2025, tive a oportunidade de apresentar junto aos atuais coordenadores do Projeto, Felipe Fonseca e Anelita Del Vecchio, o tema “Tempos Sentidos”. Neles, e em seu belo trabalho, inspiro-me para uma reflexão em torno desse sensível tema. 

Começo lembrando de Freud (1908) quando por mais de uma vez ele disse que os poetas são os que chegam primeiro na profundidade das coisas. Em Fernando Pessoa temos a palavra do poeta, quando ele entoa:  

"Navegar é preciso, viver não é preciso." 

A frase do poeta Português é parte de um poema repleto de significados, que não surge do nada: como tudo que o ser humano produz, sempre há profundas raízes conscientes ou inconscientes. 

Pessoa teve na sua vida pessoal seus tempos sentidos que trabalharam para construir quem ele se tornou e chegar aos poemas que escreveu. Através do poeta, pensamos que não somos o que somos apenas pelo que vivemos, mas também pelo que outros viveram e deixaram. Mesmo as falas, os pensamentos e as ideias não são totalmente próprias, porque antes das nossas, outros de certa forma já iniciaram a sua construção; todos somos continuadores.  

Donald Winnicott, segundo sua esposa Clare (Giovacchini, 1995), se apropriava de ideias de outras pessoas, mas apenas após passá-las pelo filtro de sua própria experiência. Frequentemente esquecia a fonte, porém, mesmo sendo ideias alheias, ele as enriquecia como clínico e indivíduo, recriando-as a partir de sua própria visão. Autor de potencial criativo imenso, recriava na sua atividade clínica, novas ideias e propostas que se tornaram conhecidas e muito úteis na prática da psicanálise. 

A frase afamada por Fernando Pessoa, foi originalmente dita por volta de 70 a.C. e é atribuída ao general romano Pompeu, que a teria dito aos seus marinheiros no intuito que partissem em direção a Roma, apesar de uma grande tempestade, levando o trigo carregado na Sicília, na Sardenha e na África (Martins, 2021). 

Contextualizando ao momento histórico de Roma, levar o trigo até lá não era uma questão de viver e sim de sobreviver. Tratava-se de uma questão de manutenção das necessidades básicas de sobrevivência: alimentação e auto conservação. Para encorajar os seus marinheiros a enfrentar a forte tempestade que aterrorizava a todos, subiu a bordo e disse: "Navigare necesse est, vivere non est necesse" Navegar é necessário, viver não é necessário. Não era uma questão de viver e sim de sobreviver. Sem alimento não há sobrevivência. 

O genial poeta e escritor português Fernando Pessoa (1888-1935) valeu-se e transformou a frase substituindo o termo "necessário" por "preciso", tornando-se:  

"Navegar é preciso, viver não é preciso". 

Por algum ou vários motivos, Fernando Pessoa possivelmente necessitou valer-se dessa frase que se transformou em poema que, como veremos, ele ampliou em significado e sentido. Porque "Navegar é preciso, viver não é preciso" é mais amplo que "navegar é necessário, viver não é necessário" (Martins, 2021). 

Segundo historiadores (Pais, 2012) Fernando Pessoa, que nasceu em 1888, perdeu o pai quando tinha 5 anos. Seu pai era crítico musical e faleceu muito novo, aos 43 anos de idade. Um ano depois da morte do pai, faleceu também o irmão mais novo de Fernando, permanecendo então como o único filho de sua mãe Maria Madalena Pessoa, de ascendência açoriana. A perda do pai e do irmão torna o futuro poeta muito triste, como se pode observar em fotos, raramente se vê sorrir. Poucos anos depois sua mãe casa-se de novo com o comandante João Miguel Rosa, cônsul honorário de Portugal em Durban e em 1896, com 8 anos de idade, vai para a África do Sul. Começava então o navegar de Pessoa. Pouco mais de 20 anos depois, Fernando Pessoa já teria motivos internos para ser poeta e escrever o poema "Navegar é preciso, viver não é preciso", que foi escrito em 1914 (vale guardar essa data pelo que veremos logo adiante). 

“E chegamos assim ao ano de todos os anos: 1914, o ano que designou de "triunfal da (sua) vida" no qual surgiram nele vários poetas, que chamou de heterônimos ("outros nomes", isto é, poetas que escreviam uma poesia diferente daquela assinada com o seu verdadeiro nome). Segundo contou mais tarde, em 8 de março, e subitamente, numa espécie de êxtase, surgiram nele os poetas Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.” (Pais, 2012)  

Pessoa ficou conhecido como o poeta dos heterônimos, o que também é interessante para nossa reflexão, porque com sua dança de nomes e palavras manifesta a multiplicidade de expressões de seu eu, sua riqueza poética criativa. 

"A obra pseudônima é do autor em sua própria pessoa, no nome que ele assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu". (Zenith, 2022)  

 

"Navegar é preciso; viver não é preciso.  

Quero para mim o espírito desta frase, transformada A forma para a casar com o que eu sou: Viver não É necessário; o que é necessário é criar.  

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.  

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso Tenha de a perder como minha.  

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho  

Na essência anímica do meu sangue o propósito Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir  

Para a evolução da humanidade.  

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça." (Pessoa, 2013)  

Pessoa nos convida a pensar na sobrevivência psíquica quando diz:  

"... o que é necessário é criar." 

Ele não apenas cria, mas também recria, pois utiliza uma mesma palavra para propor múltiplos significados. Vamos aos termos do poema com breves significados:  

"Navegar é preciso" exprime precisão. Navegar tem suas regras, pode ser ensinado e reproduzido como forma que se repete em qualquer lugar. É preciso, ou seja, tem suas exatidões.  

"Navegar é preciso" exprime necessidade, porque não navegar significaria permanecer estagnado. Tem o sentido de movimento, de não se deter, de seguir adiante. Aponta para tudo o que sobrevive, que não naufraga, porque parar a embarcação e não navegar seria ficar sujeito ao movimento das águas e das tempestades. Uma alusão ao que fica inerte, à passividade.  

"Navegar é preciso, viver não é preciso" remete à imprecisão do viver. Viver é o navegar impreciso. Ressalta que a vida que não tem uma precisão matemática. Viver, tanto quanto navegar, significa correr riscos, estar sujeito a imprevistos, ao desconhecido. Essa segunda parte é aberta e solicita uma outra capacidade, a da criação. 

No tema dessa fala, Tempos Sentidos, também a palavra sentido possui vários significados. 

Sentido remete ao sentir: àquilo que é sentido, com sentimentos, com dor, com emoção. Diz respeito ao contato com a experiência, com a proximidade afetiva de quem está presente. Esse é um tempo sentido; que não faz de conta, mas que vivencia e sente.  

Sentido remete a direção. Se refere àquilo que não é para qualquer lugar, mas que tem um vetor, aponta para algum lado, tem uma bússola: que não é sem rumo. 

Sentido remete também a significado, o que pode ser representado. Ou seja, ser um tempo que também pode ser compreendido. Que cria algum sentido, mesmo que inicialmente possa parecer não ter nenhum. 

Lembramos de Bion por alguns motivos nesses pontos, sobretudo quando ele trata da experiência emocional, ou sobre o aprender da experiência. O sentido = sentir da experiência é o que proporciona a matéria prima para o aprendizado, no entanto esse  sentido necessita de algo mais para haver aprendizado, e Bion estenderá esse assunto sobretudo em sua obra Aprender da experiência (1962):  

“Para aprender da experiência, a função-alfa precisa operar sobre a consciência da experiência emocional; elementos-alfa são produzidos a partir das impressões da experiência; estes, então, se tornam armazenáveis e disponíveis para o pensamento onírico e para o pensamento inconsciente de vigília. Uma criança que está tendo a experiência emocional chamada aprender a andar é capaz, em virtude da função-alfa, de armazenar essa experiência. Pensamentos que originalmente tinham de ser conscientes tornam-se inconscientes, e assim a criança pode pensar tudo o que é necessário para andar sem precisar mais estar consciente de nada disso. A função-alfa é necessária para o pensamento e o raciocínio conscientes e para relegar o pensar ao inconsciente, quando é necessário liberar a consciência da sobrecarga do pensamento por meio do aprendizado de uma habilidade. (Bion, 2021)”

Poderíamos dizer que em situações traumáticas, para elaborar = sentido = significado, é necessária essa capacidade de metabolizar, através da função alfa. Lembramos que nessas situações há um primeiro tempo sentido de dor, perda e luto, mas também há o tempo dos navegadores, ou dos remadores, que simbolizam os sobreviventes, os que não naufragaram e que seguem remando para o futuro. 

Foram tempos sentidos também para um outro contemporâneo de Fernando Pessoa: Sigmund Freud, ainda que Freud tenha nascido antes (1858-1939). 

Conforme Paim Filho (2019), no período em que Freud escreveu "A Interpretação dos Sonhos", em 1900, ele já estava remando forte frente ao trabalho de luto pela morte do seu pai. Curiosamente, o pai de Sigmund Freud morreu na mesma época da morte do pai de Fernando Pessoa. 

Seus textos metapsicológicos são escritos entre 1914 e 1917 (Pessoa escreveu "Navegar é preciso" em 1914). Nessa época, decorrem também suas inquietudes no criador da psicanálise, com o desenrolar da primeira guerra mundial é preciso lembrar que seu genro e colegas psicanalistas encontravam-se na frente de batalha. 

"Além do princípio do prazer", publicado em 1920 ocorreu em meio a morte da sua filha Sofia (Filho, 2019). Essas breves reflexões servem para pensar sobre o que foi proposto no tema:  

Tempos Sentidos. 

Muito poderia ser desdobrado para além do que apresentamos, mas, por hora ficamos nas palavras de Pessoa:  

"Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar." 

É necessário remar, continuar, criar... O poeta vem em nosso socorro e, por isso dizemos com ele, em homenagem aos nossos inspiradores:  

Remar é preciso, viver...  

Referências  

BION, W. Aprender da experiência. Tradução de Ester Sandler, revisão técnica de Paulo Sandler. Editora Blucher. São Paulo, 2021.  

FREUD, S. Escritores criativos e devaneios. Ed. standard brasileira das obras  

psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol IX. Imago. Rio de Janeiro, 1908.  

GIOVACCHINI, P. Tradução de José Octávio Abreu. Táticas e Técnicas Psicanalíticas  

D.W. Winnicott. Editora Artes Médicas. Porto Alegre, 1995.  

FILHO, IAP. Em Construções VI - O estranho ato de escrever em psicanálise Recordar Repetir - Elaborar. Ed. ABC (Associação Brasileira de Candidatos). Belo Horizonte, 2019.  

PAIS, AP. Para compreender Fernando Pessoa: Uma aproximação a Fernando Pessoa e heterônimos. Editora Claro Enigma. São Paulo-SP, 2012.  

PESSOA, F. Organização Rafael Arraes. Navegar é preciso. Blog Textos para reflexão, domínio público, versão digital/Kindle, 2013.  

MARTINS, JP. Navegar é preciso, viver não é preciso. Artigo escrito na página do CRM-Paraná (Conselho regional de Medicina do Paraná) - crmpr.org.br, 2021.  

ZENITH, R. Tradução Pedro M. Soares. Pessoa: Uma biografia. Editora Companhia das Letras. São Paulo, 2022


 

1 Comentário
Sandra Beatriz Méndez Torres
33 dias
Aos olhos de um linguista, o texto "Tempos sentidos" remete, também, ao conceito de dialogismo, desenvolvido pelos filósofos russos Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov. Para eles, todos os enunciados têm a propriedade de ser dialógicos. Pois, ao proferir (ou escrever) um enunciado, o ser humano interage, conscientemente ou não, com outros enunciados, outros discursos, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação com eles. Em fim, a questão é que preciso concordar: remar é necessário ... e demanda disciplina, entre outros fatores, os quais nos levam a perceber que não estamos todos no mesmo barco, se não (talvez) no mesmo mar. Mas, o que quero dizer é que alcançar os seus textos é sempre um presente para a alma, Dr. Sérgio. Obrigada!

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