Ainda estou aqui: bastidores e o filme

Tudo consiste em saber ver e escutar
James Benning
A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado prossegue até nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. (Paiva, 2015, p.21)
As lágrimas que “Ainda estou aqui” desperta/acolheu são lágrimas não choradas por Eunice Paiva e seus 5 filhos, impedidas, quando do desaparecimento de Rubens Paiva, no ano de 1971 durante o regime militar, e das detenções dela própria e de sua filha Eliana. E lágrimas que muitos expectadores de hoje também não choraram, por não “saberem” o que estava acontecendo em suas vidas, como eles. A melancolia é o luto de um fantasma, impedido do seu rito de passagem; parte do ego é perdida, quando não se sabe o que se perdeu. Eunice, que se tornou ativista dos direitos humanos como Antígona - inspiradora do direito e da ética - entregou a vida para sepultar humanamente seu ente, lutando pelo enterro justo do morto para assegurar a dignidade dos vivos. Eunice
“foi uma das principais forças de pressão que culminou com a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura militar; foi a única parente de desaparecido convidada a assistir à solenidade em que Fernando Henrique Cardoso assinou a lei.[11]” (Wikipedia.org)
Trauma é o que não tem representação psíquica, como a morte, e o desaparecimento é a tortura infinita dos que ficaram, uma morte que não se corporifica, como Prometeu sendo morto eternamente.
A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se a toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça. (Paiva, 2015, p.141)
Uma abertura de ano, momento de expectativa, de renovadas esperanças...
A abertura, a partir de 1984, permitiu que documentos do DOI-CODI viessem a público, e a Comissão da Verdade busca reparar a perseguição a Eunice(s) e seus filhos, iniciada durante a ditadura militar.
Em 5 de abril de 2024, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), outorga o Colar de Honra ao Mérito Legislativo a três personagens que simbolizam a luta contra a ditadura: Clarice Herzog (viúva de Vladimir Herzog); Ana Dias (viúva do operário Santo Dias da Silva); e, postumamente, Eunice Paiva. Os maridos das três foram assassinados pelas forças de repressão. (Wikipedia.org)
“Ainda estou aqui”, depois de suspiros, de 10min de palmas em Veneza e em outras platéias repletas, carregou toda expectativa de vencer outros prêmios e honrarias, como o Oscar 2025 na inédita categoria de melhor filme, além de melhor atriz, arrebatando, por fim, o de melhor filme estrangeiro pela primeira vez na história!!
Carrega ainda a esperança de que a história narrada, representada, conquiste, mais do que estátuas, movimento (s), uma dinâmica diferente no cenário brasileiro, quiçá mundial.
Por uma perspectiva estética, então, não se trata só de registrar como o mundo imprime sobre o filme, senão – também e sobretudo – conseguir que o filme transborde sobre o mundo. Que nos ajude a vê-lo melhor, não porque agora as coisas sejam mais claras, e sim porque o filme lhes devolveu a estranheza. (Oubiña, 2013, p.105)
Estranheza nos expectadores, o estranho familiar, a partir da catarse de sentimentos por vivências que não tinham ainda palavras, e talvez ainda não tenham, precisamos continuar as buscas! O en-foco na família de Rubens Paiva, desviou o olhar para uma “desacomodação da percepção cotidiana”, e para o mundo interno, não só daquela casa, mas de cada brasileiro. A correção do atestado de óbito de Rubens Paiva (que só teve sua primeira versão em 1996, 25 anos após a morte) depois do lançamento do filme, acompanha as premiações; os rituais coletivos tem um efeito protetor aos enlutados.
O documento entregue à família de Rubens Paiva diz que a morte foi por causa ‘não natural; violenta; causada pelo Estado Brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964. (agenciabrasil.ebc.com.br)
A dura realidade, compartilhada, não aplaca a dor da perda, mas a da solidão de viver somente intrapsiquicamente a violência, digamos, uma vivência psicótica, apartada do mundo. A nomeação do terror, que deixa de ser sem nome, permite integrar no psiquismo a parte cindida, aliviando a posição esquizoparanóide, rumo a uma posição depressiva. Agora todos podemos chorar a perda do(s) objeto(s), nem que seja no escurinho do cinema, sem medo...
O que caracteriza o cinema clássico não é tanto sua pretensão de transparência, mas sim o caráter aglutinador da narração. (Stephen Heath, 1981, citado por Oubiña, 2013, p.102)
Walter Salles, diretor, “já esteve lá” - nos anos 70 - e no tapete vermelho, com Central do Brasil, filme de 1998, e ainda está!
Curiosamente um filme sobre uma professora que escrevia cartas por analfabetos, sem as enviar, e acaba se ocupando de cuidar de um menino de 8 anos órfão de mãe, decidindo buscar o pai do menino junto com ele. Cartas e documentos que não chegaram se transformaram em mensagens que chegam a nós, analfabetos em tantas letras da história brasileira. Parece que Walter busca novamente pelo pai (que foi quem sobreviveu no seu próprio caso), agora de Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo (2015) que originou o filme de 2024.
Importa pensar que a supressão da experiência histórica funciona da mesma forma que no psiquismo individual. A cultura também tem aspectos denegados e, como tal, há sempre o que permanece indomável, o que escapa ao controle e que tende à repetição dos fatos violentos e traumáticos, como já indicava Freud (1914). Ou o retorno do oprimido, que, diferentemente do reprimido, é resultado de uma censura que se organiza contra o direito de ser do self, efetuada a partir de uma sobredeterminação de fora, e sob efeito da opressão do outro. (Bollas, 2015, citado por Rea, 2024, p. 156)
Lá (1998), Fernanda Montenegro era a protagonista, também indicada ao prêmio de melhor atriz, e ainda está aqui, finalizando o filme, com a filha protagonista e indicada ao Oscar 2025. Eunice e Marcelo, assim como Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, transformaram suas angústias em textos e atuações cinematográficas; merecem nosso reconhecimento por isso, pela transformação da angústia em arte, em símbolos, tornando-se símbolos da pulsão de vida. Afinal, conflitos inconscientes podem vir a ser sonhos, arte ou sintomas nos reles mortais... Na cena final, é como se Eunice/Fernanda assistisse a história, assim como as duas Fernandas puderam se assistir no roteiro...
Fernanda Montenegro, imortal da Academia Brasileira de Letras, ainda está aqui, aos seus 95 anos, tanto nas telas quanto na construção do registro da memória nacional através da arte, enquanto Eunice partiu, transcendendo a própria morte.
Em 8 de janeiro de 2025, para relembrar os dois anos dos ataques antidemocráticos em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina o decreto que cria o Prêmio Eunice Paiva de Defesa da Democracia, que deve ser entregue anualmente a uma pessoa que tenha colaborado de forma notória, seja por atuação profissional, intelectual, social ou política, para a preservação, restauração ou consolidação do regime democrático no Brasil. A premiação, além de destacar e exaltar as trajetórias dos vencedores, pretende evocar a memória de luta de Eunice Paiva em favor da resistência democrática e da defesa dos direitos humanos.[25][26] (Wikipedia.org)
Fernanda Torres, vencedora do Globo de ouro e concorrente ao Oscar de melhor atriz, bem como os filhos de Eunice e Rubens, ainda está aqui, carregando o legado de sua mãe e de seu pai, o ator Fernando Torres. Eunice, como Fernanda, era portadora de vasta cultura geral, formada em letras antes do direito, fluente em francês e inglês, e, quem sabe, na linguagem do corpo e da alma que dedicou a sua obra. Fernanda foi formada nas artes desde o útero; o corpo de sua mãe já portava uma alma de artista, que ela herdou, conquistou e tornou sua: “aquilo que herdaste dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”(Goethe). Fernanda Torres encarna Eunice, encarna sua mãe Fernanda Montenegro, e encarna o que temos de mãe dentro de nós, e desta vivência ao mesmo tempo de desamparo e de pulsão de vida, extremos no início da vida e reeditados em situações extremas. A atuação sem excessos, provocou excessos de experiências no público; ninguém sai ileso, ninguém sai igual ao que entrou no cinema.
“O cinema e a psicanálise são incursões guiadas ao inconsciente” (Buñuel); um filme, um sonho, são feitos da mesma matéria prima, a realização de um desejo, ainda que desconhecido, para além das palavras, expresso em imagens e, principalmente, simbolização!
O início do filme introduz a vida familiar Paiva, com cenas que facilmente condensam, retratam a vida de algumas famílias brasileiras da década de 70. Ou mesmo o desejo de vida familiar: um casal de classe média com bom relacionamento e libido evidentes, cinco filhos atravessando bem suas respectivas fases do desenvolvimento, desfrutando criativamente suas personas, sem problemas relevantes no horizonte. Os amigos, vínculos de amor que integram aquelas personalidades, começam sinalizar que fora desse núcleo o cenário está bastante diferente, e invadirá a vida de todos, não há como manter o “escudo protetor”, como diria Roussilon, que a família precisa. Escudo que protege o sujeito dos excessos da realidade para que possa vir a ser, construir seu si-mesmo. A filha mais velha, no desabrochar do seu ser em franca adolescência, dispara um “grito de alerta”, como parte da sua fase rebelde da vida, como porta-voz da fase da vida de todos. Resistindo, negando a ameaça, a família segue seu ritmo até que o mundo externo se impõe ao interno. Num conflito político/social, a primeira morte é a da verdade; os grupos políticos se organizam regidos pelo suposto básico de luta ou fuga, primitivo, mais do que pela realidade/verdade. A percepção da ameaça como real se mistura com a paranóia individual, a experiência esquizoparanóide se mistura com a política do terror institucional. Rubens é levado por militares, diante da mulher, para nunca voltar.
No momento em que a imagem se detém (ou melhor: no momento em que a imagem obriga o espectador a se deter), o enquadramento transborda em inúmeras camadas de informações aparentemente insignificantes que o decorrer do relato não deixava que fossem vistas. (Oubiña, 2013, p.101)
Ainda estou aqui representa o desejo de todos que ficaram: que seu ente, objeto amado, ainda esteja. O trabalho de elaboração do luto, depois de uma perda, requer a renúncia ao objeto, a “des-pedida”, o abandono deste desejo, para a possível introjeção e redirecionamento da libido, primeiro recolhida ao ego, narcisicamente, depois voltada a novo(s) objeto(s). Sem um corpo, o abandono do objeto torna-se impossível na realidade, fica confinado ao psíquico, às fantasias, ao conflito entre o desejo de abandonar e o de nunca abandonar. A cena icônica em que Eunice olha o marido se afastar em seu próprio carro, levado por militares, denuncia este dilema: saber e não saber que não o veria mais, entre a esperança e o velório.
A corporificação da morte começa ter alguma representação quando Eunice e a filha são presas, ficando a mãe 12 dias submetida a interrogatórios. Agredida e percebendo as agressões que outros presos políticos sofriam, inclusive ouvindo gritos da filha, a morte ganha corpo e mente. Não só a violência física, corporificada em Eunice, como a obstinação em incriminar Rubens Paiva se tornam realidade material. O estado confusional durante os interrogatórios, remetem ao sentimento de “encapuzada” pelo marido, sem saber para onde estava indo, por não saber sobre o que acontecia. Capuz para proteger a todos, ou expondo a riscos, qual o limite?
O sensato seria nos mudarmos para Londres ou Paris. Minha irmã Vera passava férias em Londres. Deveríamos ter ficado por lá, como fez o Gasparian. Meu pai perdeu o timing. Onipotência e teimosia que minha mãe nunca perdoou. Queria lutar queixotescamente numa guerra já perdida. Arriscou a família. Tinha cinco crianças. E tenho certeza de que, destroçado pela tortura, deve ter pensado nisso. Sabendo que a minha mãe e a minha irmã Eliana estavam nas mesmas dependências do Doi-CODI em 21 de janeiro de 1971, de capuz, prontas para os torturadores caírem em cima, sabendo que minha mãe e minha irmã não tinham a menor ideia do que faziam ali, ele deve ter sofrido, ele, o irredutível inconformado, que não soube tomar as precauções devidas. Inimaginável o seu sofrimento. Talvez a dor da tortura não chegasse aos pés da descoberta de que tomou decisões erradas, arriscou a vida da mulher e dos filhos, crianças ainda. Deve ter sido a sua derradeira tortura. (Paiva, 2015, p.93)
Todos os limites físicos e psíquicos foram violados, a situação toda era sem limites, e precisava de algum. A delimitação do eu e do outro, o não-eu, é o limite que tranquiliza, como uma fronteira permeável, ou aterroriza, como um abismo intransponível ou uma invasão sem discriminação.
A integração da satisfação e da frustração no mesmo objeto aproximam o objeto e o eu da realidade; a experiência da tortura, essencialmente má e necessariamente frustrante do mais básico humanamente, quebra qualquer integridade, é esquizo, e pode suscitar o desejo de não estar mais aqui, do aniquilamento, do suicídio.
Grandes gestos são humildemente casuais. Tenho um agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado a minha mãe. (Paiva, 2015, p.34)
A solidez da relação de toda família, o objeto bom internalizado, asseguram que o silêncio de Rubens era proteção, e era isso o que ela precisava prover para si e para os filhos, agora sozinha. A segurança nas declarações de Eunice, irrefutáveis pelos inquisidores, são o resgate de Rubens como marido e pai, engenheiro e político, uma totalidade da sua visão do objeto. O pavor de deixar os filhos expõe ainda outra face da morte; Eunice, traumatizada física e psiquicamente, corporifica o trauma de ter sua libido e seu marido arrancados de si, seus sonhos, sua vida de até então amputados, e os filhos desamparados.
A impossibilidade de representar já não é eficácia de uma quantidade excessiva que por isso se torna traumática – sua teoria prévia. Incorpora ao psíquico a reincidência do não significado, do não figurado, do que não tem antecedentes, o que apresenta um “excesso” de estrutura impossível de ser saldado: o “acontecimento”. (Mouguillanski, 2013, p.67)
O “trauma cumulativo”, não apenas um evento isolado segundo Masud Khan, provoca sintomas. Assim como o tecido físico não cicatriza, o aparelho mental repetidamente traumatizado não alcança uma reconfiguração. Depois do desaparecimento, das detenções, Eunice e seus filhos continuaram sendo perseguidos, vigiados e aterrorizados. A reação do ambiente à família, o tratamento dado pelo Estado às reivindicações de informações sobre o cidadão desaparecido sem nenhum direito civil respeitado, os obstáculos burocráticos (bancários entre outros) ressuscitados após o ocorrido, e até mesmo a possível ajuda caridosa dos amigos evocam o sentimento de humilhação.
A humilhação se refere a um estado de desgraça ou de perda do respeito por si próprio dado por uma ferida que machucou o ego; especificamente, uma ferida narcísica. (...) a humilhação coloca em jogo o status ontológico do ego. (Mouguillanski, 2013, p.71)
O requinte de crueldade de matar atropelado o cachorro da família/do Marcelo, objeto transicional por excelência (eu/não-eu, outro/não outro), e por representar uma lembrança do temperamento do pai, agora fere o narcisismo pela coisificação do sujeito. É como se matassem novamente Rubens, mas também Marcelo e um pedacinho de cada uma. A perversão, desumanizar o outro, como na tortura, foi assistida por todos a céu aberto. A vida, mais uma vez, é tratada como sem nenhum valor, e dispara a reação pulsional de Eunice: sua pulsão de vida grita! Sua postura se enrijece, contém suas manifestações de afetos bem como as dos filhos; lágrimas são substituídas por sorriso nas fotos e por luta, assim expulsa os agressores do seu entorno.
Éramos “A família vítima da ditadura”. Apesar de preferirmos a legenda “Uma das muitas famílias vítimas das muitas ditaduras”. Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima, não é revanchista. (Paiva, 2015, p.32)
Os filhos precisavam da mãe, e Eunice também precisava de colo, um trauma, experiência que excede o psiquismo, precisa de outros psiquismos que a contenham. Abandona suas tentativas de se manter “onde estava”, decide mudar-se com os filhos para perto de sua família de origem, estudar direito e iniciar uma carreira ligada à defesa dos direitos humanos, a começar pelos seus, chegando aos nossos/seus ancestrais, os indígenas. “Ainda estou aqui”, viva, deixa de ser o desejo ligado a Rubens, e passa a ser a vivência de Eunice; inicia a sua elaboração do luto, dando vida a uma ativista, dá vida a uma parte do marido. É resgatada/reparada a fertilidade do casal, gerando sementes de novos sonhos, e continência/abrigo para desprotegidos in-fantes (sem-fala). A potência suplanta a castração.
Os processos de simbolização têm como ponto de partida a contenção do afeto do que é vivido como excesso, que emerge da realização negativa. Um capítulo importante na construção da realidade psíquica é o processamento da emoção. (Mouguillanski, 2013, p.70)
“Quando decidiste que papai tinha morrido?” não é apenas uma pergunta, mas uma necessidade psíquica neste contexto. “Decidir a morte de papai” ainda enfrenta o conflito pela dor do desejo parricida, inconsciente e nunca realizado “nas melhores famílias”, e torturante quando o pai de fato morre, especialmente se é preciso “decidir que está morto”. A luta pelo atestado de óbito atesta esta carência, e a obtenção, paradoxalmente, alivia a todos.
A ditadura apertou. (...) Meu pai foi morto e preso naquele ano. Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de nenhum outro moleque. Muitos passaram a me evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, eles aprendiam com alguns professores, liam na imprensa, viam nos telejornais. Meu pai era membro do “Terror”! Em 1971, eu ficava muito tempo sozinho no banco da escola. (Paiva, 2015, p.61)
Além do reclame por um direito e pelo apaziguamento da angústia, a busca pela verdade, pela responsabilização de quem deveria proteger a todos, transforma o fantasma em falecido, e a viúva e os órfãos em pessoas como todas as outras, resgatadas do esquecimento e do desamparo do Estado. Na horda primitiva não temos ainda o direito coletivo, como marco civilizatório, todos são protegidos pela presença do pai. Com a morte do pai e sem o Estado de Direito, Eunice, como muitas mulheres, assume que precisa lutar pelos seus.
Não seria fácil atender psicanaliticamente Narciso ou Édipo, sem ouvir pelo menos Liríope e Jocasta. Certamente, após ouvi-los, eles seriam encaminhados para outros analistas. (Cassorla, 2013, p.48)
O que acontece às famílias quando alguém morre? O consolo e o apoio social? E quando não é declarada a morte? O filme envergonhou a muitos, por não pensarem nos que ainda estão aqui!
E é o que faz alçar vôos transgeracionais posto que o conteúdo traumático denegado também se transmite de modo transgeracional; uma herança inconsciente que na forma de sintoma comparece na subjetividade das novas gerações, por meio dos processos de identificação e construção de ideais. (Rosa, 2001, citado por Rea, 2024, p.158)
Eunice, ao buscar inabalavelmente o que era direito de Rubens, e de muitos outros desaparecidos, rompeu com criptas, com segredos, tabus familiares e sociais, fundamental para a saúde mental dos indivíduos e da sociedade. Marcelo, ao escrever sobre sua família, com foco na mãe, relembrando que Eunice o teria feito se não tivesse adoecido, buscou ainda o que ela perdeu no final de sua vida: a memória, desaparecida pela doença de Alzheimer.
A intensidade de uma lembrança é diretamente proporcional à antiguidade. As recém-chegadas somem antes daquelas de que lembramos vezes na vida, as adquiridas. Quanto mais antiga e primitiva, mais estável ela é. As últimas se vão primeiro. (Paiva, 2015, p.27)
Na história e na psicanálise, o que não é lembrado não é elaborado; é repetido, por vezes compulsivamente, como expressão da pulsão de morte.
Fundamental, portanto, é o trabalho da cultura, que traz ao nível da consciência o que até então se fazia denegado, para construir uma nova inteligibilidade, reunindo a dimensão psíquica, individual e coletiva, e para transformar o impensável em pensável a ser pensado. Ou seja, relatar o rememorado possibilita a elaboração do traumático. É o que determina a escuta do analista, é o que transforma a vivência bruta em ressignificação individual e em repertório social. (Rea, 2024, 157)
E aqui estamos, como os filhos de Rubens Paiva e como filhos desta história, inegavelmente nossa história. “A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país é que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva” (Paiva, 2015, p.32). A trilha sonora do filme ainda segue no nosso repertório, e é composta por músicas da Tropicália e da Jovem Guarda, duas tribos diferentes que coexistiram nos anos 60/70, apesar das diferenças, algo que só a arte conseguiu naqueles tempos e hoje, na nossa “comemoração tipo copa do mundo”. Músicas que tocaram... Finalizo com versos do Chico Buarque, também premiado recentemente com o prêmio Camões de literatura pelo conjunto de sua obra, que não estão na trilha, mas versam sobre o mesmo tema...
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá... (Chico Buarque, 1968)
Catherine Lapolli
Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA
Bibliografia
Paiva, M.R. (2015) Ainda Estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva.
Wikipedia.org
Oubiña, D. (2013) A imagem suplicante (narração, duração e excesso no cinema). Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 11(2).
agenciabrasil.ebc.com.br
Bollas, C. (2015) in Rea, S. (2024) Sobrevivente. Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 22(1).
Mouguillanski, R. (2013) Sobre a noção de excesso, sua pertinência na psicanálise e os excessos da noção de excesso. Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 11(2).
Cassorla, R, (2013) O analista, seu paciente adolescente e a estupidez no campo analítico. Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 11(2).
Rosa, M.D. (2001) in Rea, S. (2024) Sobrevivente. Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 22(1).
Rea, S. (2024) Sobrevivente. Calibàn – Revista Latino-americana de Psicanálise, 22(1).
Chico Buarque, 1968
2 Comentários
Jose Francisco Rotta Pereira
49 diasResponder
Jose Francisco Rotta Pereira
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